COMUNICADO - NOVA EDIÇÃO DA REVISTA HUMUS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Entre os ruídos incessantes da técnica, os algoritmos que nos mapeiam e a melancolia das promessas modernas, ainda resiste o humano. É nessa fresta tênue, luminosa, insurgente que esta edição da Revista Húmus se abre, reunindo trabalhos que pensam o corpo, o ser e a sociedade sob a vertigem de um tempo em que a dignidade e a diferença são constantemente postas à prova. Não há unidade de tema, mas há uma sintonia profunda: a de um pensamento que busca respirar em meio à saturação. O conjunto de textos aqui reunidos forma um mosaico em que Filosofia, Arte, Teologia, Direito e Psicanálise não apenas dialogam elas se contaminam, misturam-se, desobedecem às fronteiras disciplinares, à maneira de quem ainda acredita que o pensamento pode ser um gesto de resistência. O artigo “Filosofia, Direito e Sociedade Digital”, de Rodrigo Marra e Laércio dos Santos Martins, abre a edição com o diagnóstico contundente de nossa contemporaneidade: o cansaço. A partir de Byung-Chul Han e Jeremy Bentham, os autores revelam como a vigilância digital e a performatividade social transformam o sujeito moderno em empresário de si mesmo, um escravo de sua própria liberdade. A sociedade da transparência, longe de libertar, aprisiona sob a promessa da visibilidade. O texto é um espelho incômodo devolve-nos a imagem do sujeito esgotado, ansioso, em permanente estado de exposição. Na sequência, Laurênio Leite Sombra, em “Diferença Ontológica: uma apropriação política do conceito”, propõe um desvio: pensar Heidegger para além de Heidegger. Reencontra, na “diferença entre ser e ente”, não apenas uma questão metafísica, mas um campo de disputa política. Sua leitura é densa e precisa: a diferença ontológica torna-se fundamento para repensar a constituição das identidades e, portanto, os modos de exclusão e violência que delas derivam. O artigo é um chamado à responsabilidade de pensar, como diria Derrida, o outro em sua alteridade irredutível. Do ontológico passamos ao pedagógico. Higor Renan Bezerra Pessoa e Arnaldo Martin Szlachta Junior, em “Aula-Oficina e Aula Histórica como propostas metodológicas da Educação Histórica no Brasil”, retomam Isabel Barca e Maria Auxiliadora Schmidt para refletir sobre a formação da consciência histórica no espaço escolar. Ao recuperar o sentido da aula como lugar de pensamento e não de mera repetição, os autores restituem à didática o seu papel originário: o de um exercício de liberdade e criação. O gesto estético que atravessa essa edição aparece com vigor em “A Fluência Poética em Rosa de Hiroshima no corpo e voz de Ney Matogrosso”, de Adriane Tavares Santos Nogueira e coautoras. O artigo faz da performance de Ney, uma escritura do corpo, o poema de Vinicius, reinventado na carne, torna-se denúncia e encantamento. A leitura interartes revela o poder da arte como resistência ao esquecimento e à barbárie, lembrando-nos de que, mesmo diante da ruína, ainda há beleza possível, ainda há voz. A dimensão íntima e terapêutica da escrita surge no texto “Neurose Histérica: o caso dos três furúnculos na boca”, de Márcio Bernardino Sirino. Aqui, o autor faz da própria experiência psíquica um campo de investigação, unindo autobiografia e psicanálise. O corpo fala quando a palavra se cala e esse falar do sintoma, explorado à luz de Freud, é também uma forma de verdade. Sirino nos lembra que o saber não se constrói apenas na abstração conceitual, mas na ferida, no tropeço, no silêncio que pede elaboração. Já em “A mais sólida opinião: observações sobre o princípio de não contradição em Aristóteles (e Heráclito)”, André Felipe Gonçalves Correia reconduz o leitor às origens do pensamento ocidental. Ao confrontar o logos aristotélico com o fogo heraclítico, o autor mostra que o pensamento nasce da tensão e não da síntese e que, talvez, o próprio princípio de não contradição seja o mais contraditório dos princípios. O texto é erudito, mas também provocativo: nele, filosofia é retorno à origem e, ao mesmo tempo, insubmissão à fixidez da origem. A seção de traduções e humanidades clássicas é representada por “Apresentação à Biblioteca de Pseudo-Apolodoro”, de Uadi Nóbrega, que oferece uma tradução literária e rigorosa dos “Doze Trabalhos de Héracles”. Nóbrega devolve ao português a vitalidade mítica do texto grego, num trabalho filológico que, ao revisitar o mito, resgata o sentido poético e simbólico do heroísmo — não como força, mas como travessia do impossível. O campo teológico e social encontra expressão poderosa em “Teologia da Libertação e a luta pela vida em uma economia sacrificial”, de Márcio Divino de Oliveira. Ao articular interseccionalidade, racialidade e exclusão urbana, o autor evidencia que a teologia, quando se abre ao mundo, é também denúncia. Contra a lógica sacrificial do capital, ergue-se a espiritualidade do cuidado e da resistência, em diálogo com as vozes invisibilizadas da rua, do corpo negro, do feminino. Essa denúncia ecoa na reflexão de Bibiana Paschoalino Barbosa, Luiz Henrique B. O. Pedrozo e Fernando de Brito Alves, em “‘Normalização’ corporal e direitos humanos: uma análise jurídico-bioética das intervenções em crianças intersexo no Brasil”. Tomando o caso de Jacob Chrystopher como eixo de análise, o artigo confronta a violência simbólica e médica que ainda se abate sobre corpos intersexo. Ao recusar a patologização da diferença, o texto reivindica o direito ao próprio corpo, à autonomia e ao futuro — um manifesto pela dignidade como fundamento do humano. Encerrando a edição, Denise Oliveira e Silva, Fábio Liborio Rocha e Erica Ell, em “A representação cultural em Stuart Hall: sobre a interseccionalidade do alimento conector e seu significante”, propõem uma leitura original sobre a comida como linguagem da identidade afro-brasileira. Inspirados em Stuart Hall, pensam o alimento como signo político, como herança diaspórica que resiste à homogeneização cultural. O artigo é um banquete simbólico: lembra que comer é também lembrar, é reafirmar a presença do corpo negro na história e na cultura. Reunidos, esses textos não formam apenas uma edição acadêmica formam um gesto de escuta. O húmus de onde brotam é o mesmo que dá nome à revista: a terra fértil onde o pensamento encontra o corpo, onde o conceito reencontra a vida. Em tempos de simplificação e ruído, pensar é um ato radical. Pensar é preservar o humano. Esta edição, “Frestas do Humano: Filosofia, Corpo e Resistência na Era Digital”, é, pois, um convite: a habitar as frestas, a cultivar o pensamento como quem cultiva a terra com paciência, com coragem e com esperança. Porque, talvez, seja nas margens entre o ser e o abismo, entre a palavra e o silêncio que ainda se pode ouvir o que resta de verdadeiramente humano em nós.
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